Mulher nascida em Guaxupé conclui doutorado aos 81 anos depois de inúmeros desafios
Dalzira saiu de Minas, com destino a São Paulo, aos 2 anos, em 1943. Nascida em Guaxupé, vem de uma família com nove irmãos e é mãe de sete filhos. Fascinada pela educação, ela tem a certeza que é a melhor ferramenta de transformação.
“Não precisa que o outro acredite na gente. É só nós mesmos acreditarmos”. A fala é da mineira Dalzira Maria Aparecida, de 81 anos, que concluiu o doutorado em educação em setembro.
Nascida em Guaxupé, Dalzira é uma mulher preta, vem de uma família com nove irmãos e é mãe de sete filhos. Fascinada pela educação, ela tem a certeza que é a melhor ferramenta de transformação.
A sacerdotisa do candomblé é também reconhecida pela atuação no movimento negro em Curitiba (PR), com foco nas mulheres negras. Com os inúmeros desafios da vida, só pisou em uma sala de aula pela primeira vez aos 47 anos.
Com 63, iniciou uma graduação em relações internacionais, na UniBrasil Centro Universitário, formando-se aos 68 anos. Aos 72, foi a vez do mestrado. E agora, aos 81 anos, concluiu o doutorado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Amor pela educação
Dalzira saiu de Minas, com destino a São Paulo, aos 2 anos, em 1943. “Mesmo assim me considero mineira, pela minha história, antepassados, pela culinária do nosso estado. Decidi ser pesquisadora das causas negras, por conta da defasagem de materiais sobre o assunto”, inicia em entrevista ao BHAZ.
O pai da pesquisadora nunca incentivou as filhas mulheres a ir para a escola, somente os homens. “Ele falava que seríamos sustentadas pelos maridos futuramente, que não precisávamos estudar. Mas eu sempre quis”.
Com as constantes mudanças da família, Dalzira conta que sempre achou que era “o momento certo” para iniciar os estudos, “mas não era”. “Convenci meu pai a me ensinar a ler quando tinha 13 anos. Lembro que a primeira palavra que li foi em uma lata de banha, que estava escrito ‘delícia’, fiquei juntando as letras várias vezes e repetindo. Dia e noite tentando soletrar”.
“Fui aprendendo com uma cartilha que meu pai me deu. Todos os dias ia treinando. Não foi bem uma alfabetização, mas foi assim que aprendi”. O tempo foi passando, até que ela se mudou em definitivo para Curitiba, onde mora há 52 anos.
Yyagunã Dalzira Maria Aparecida é sacerdotisa do Candomblé (Arquivo pessoal/Dalzira Maria Aparecida)
‘A mais velha era eu. A preta era eu’
Não foi nada fácil iniciar a graduação. Com 63 anos, todos os alunos eram mais novos. “A mais velha era eu, a preta era eu. Não tinha nenhuma pessoa negra na minha sala de aula”.
“Naquela época já tinha começado a informática mais pesada. Eu não sabia nem abrir um e-mail, tinha que pedir para as pessoas. Minhas filhas ajudaram bastante”. Todas as filhas de Dalzira são adotivas. “Sempre falo que elas não saíram de mim, mas entraram em mim”.
Mestrado não estava nos planos
Quase 10 anos após a graduação, veio o mestrado, em 2011. “Foi uma senhora que me convidou. Inicialmente, eu disse que não, que não queria, que não daria conta. Só que o marido dela, que era professor, disse que teria muito prazer em me orientar”.
Depois de refletir um pouco, decidiu aceitar o novo desafio. “Foi difícil de novo, mas eu sabia que seria. Pela questão da idade mesmo. Resolvi fazer três disciplinas de uma vez. Consegui concluir em 2013”. A dissertação apresentada foi “Templo religioso, natureza e os avanços tecnológicos: os saberes do Candomblé na contemporaneidade”.
Hora do doutorado
Cinco anos depois, em 2018, ela iniciou o doutorado em educação pela UFPR. “Fiz um curso preparatório na própria federal, para aprender a organizar os textos e fazer leituras mais teóricas. Prestei o exame e passei”.
“Quando eu passei, o orientador logo abraçou a causa. Foi bem difícil, mas deu para sair o trabalho. Dividi em cinco capítulos”, explica a pesquisadora.
A educadora começou o trabalho com uma introdução sobre a narrativa de sua vida. “Inicio falando sobre os políticos e religião. Conto um pouco sobre o que é o início do neopentecostalismo até os dias atuais, com a fusão do Estado. Hoje vivemos em um estado totalmente laico-cristão”.
“Falo das dificuldades que isso trouxa para nós do candomblé. A religião é algo pessoal, no nosso caso é ancestral. Trato isso, a questão de religar com as nossas heranças. E também sobre o desrespeito do Estado brasileiro com as religiões de matrizes africanas”.
Dalzira ainda mostra como “estamos nos mantendo diante desse estado que é laico-cristão”. “Fiz um recorte de gênero, da mulher negra e emoção, das várias identidades, que é outra questão nossa desde a colônia. Fecho com as professoras negras, três de matrizes africanas e três neopentecostais.
Dalzira fez graduação, mestrado e doutorado (Arquivo pessoal/Dalzira Maria Aparecida)
Desmonte da educação no Brasil
Não é de hoje que a educação em solo brasileiro não é prioridade de governos. Para lutar contra o desmonte que acontece, a educadora afirma que, ainda mais, “vamos ter que ser resistência”.
“Não dá para continuar aceitando o remanejamento do dinheiro da educação para outros fins. Precisamos reconquistar esse espaço. As políticas afirmativas foram um avanço para sociedade. As cotas são um benefício, não um presente. Um pouquinho da reparação desde a escravidão até os dias atuais”.
“A coisa mais fácil que tem é tirar nossos direitos, mas não vamos permitir. Foi graças às cotas que consegui chegar aos 81 anos fazendo doutorado. É um mérito que temos. Sabemos bem o que acontece se isso nos for tirado. As cotas é que mudaram esse fato”.
Esperançosa, Dalzira conta do que já mudou. “Hoje vemos mulheres negras médicas, dentistas, enfermeiras, antropólogas, sociólogas. Mas ainda falta muito. Agora que estamos estruturando e vem essa triste realidade do boicote às verbas para a educação”.
Livro está em planos para o futuro
Depois que concluiu o doutorado, a educadora ganhou visibilidade nacional, e ainda não teve tempo para seguir com seus novos planos. Contudo, ela já decidiu que quer escrever um livro que conte a história de seus antepassados.
“Já me propus a escrever esse livro desde 1991, mas agora vou conseguir. O processo é sempre difícil. Vou contar minha história, dos meus antepassados. Sou uma mulher que passou por uma ditadura, não fui presa, mas tem várias formas de prisão. Tem a prisão da marca, das sequelas que isso deixou para a minha família”.
A doutora também quer incentivar a outras mulheres mais velhas e se alfabetizarem. “Saber ler e escrever é muito rico. Conseguimos chegar a lugares em que o físico não chega”.
“Quero mostrar o quanto a educação muda a vida da gente. Vejo um desestimulo da juventude para os estudos. Queremos uma universidade com mais negros. Estamos com muita garra, somos resistência”, continua.
‘É sobre ter conhecimento’
“Não precisa que o outro acredite na gente. É só nós mesmos acreditarmos. Vai ser sempre difícil para nós, considero que estamos em uma corrida. Você tem que passar o bastão e, se ele cair, dificilmente vai conseguir pegar de novo”.
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