Crônica em gerúndio
Outro dia ouvi uma música que fez muito sucesso no final da década de 1950, mas atualmente está perdida na noite dos tempos. Ela começa assim: “Eis aqui este sambinha / feito numa nota só”. Aí tive uma ideia maluca. Se o Tom Jobim pode compor o seu “Samba de uma Nota Só”, por que eu não posso escrever a minha “Crônica de um tempo só”, usando apenas verbos, e todos no gerúndio, terminando em ando, endo e indo? Afinal, pra que serve o princípio da isonomia?
Perpetrado o absurdo, a crônica foi parar no fundo de uma gaveta, de onde jamais deveria sair. Entretanto, nem tudo acontece como a gente quer. Chegou o dia de enviar texto ao Noticiantes e a inspiração não veio. Como o estado de necessidade justifica quase tudo, abri a gaveta. E a “Crônica de um tempo só”, por influência de “Samba em Prelúdio”, de Vinícius de Moraes, passou a se chamar “Crônica em gerúndio”:
Nascendo. Chorando. Mamando. Apanhando. Comendo. Descomendo. Engatinhando.
Andando. Crescendo. Evoluindo. Estudando. Aprendendo. Ensinando. Trabalhando. Ganhando. Perdendo. Comprando. Vendendo. Negociando. Flertando. Paquerando. Pedindo. Namorando. Noivando. Casando. Procriando.
Viajando. Passeando. Fotografando. Filmando. Pescando. Nadando. Velejando. Jogando.
Assistindo. Gostando. Aplaudindo. Detestando. Vaiando.
Deitando. Dormindo. Acordando. Levantando. Abrindo. Fechando. Aparecendo. Desaparecendo. Batendo. Apanhando. Caindo. Sofrendo. Lamentando. Conquistando. Comemorando. Unindo. Desunindo. Avançando. Retrocedendo. Reclamando. Xingando. Quebrando.
Escovando. Vestindo. Calçando. Usando. Lavando. Sentando. Levantando. Carpindo. Plantando. Colhendo. Combinando. Descombinando. Penteando. Despenteando. Molhando. Enxugando. Mentindo. Tremendo.
Cantando. Conquistando. Controlando. Descontrolando. Acariciando. Agredindo. Apanhando. Batendo. Incluindo. Excluindo. Digitando. Reclamando. Apagando. Brilhando. Conversando. Contando.
Esquecendo. Envelhecendo. Adoecendo. Definhando. Morrendo.
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